sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Lamentável: Elio Gaspari repete discurso da extrema-direita


No artigo intitulado "A anarquia militar é praga do século passado" [1], o jornalista Elio Gaspari  - considerado por muitos como um profissional competente e progressista - repetiu o discurso adotado pela extrema-direita ao se referir às organizações que participaram da luta armada  contra a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985). Segundo Gaspari, os governos militares

"Começaram combatendo os grupos que, entre 1966 e 1973, se lançaram num surto terrorista. Terminaram com um pedaço dessa máquina fazendo seu próprio terrorismo, botando bombas em instituições acadêmicas, bancas de jornais e entidades como a OAB e a ABI." [2]

Assim, o conceituado jornalista tanto qualificou tais organizações de terroristas, reproduzido a retórica oficial do regime civil-militar e  o  discurso das atuais "viúvas da ditadura", quanto sugeriu uma equivalência entre o "terrorismo" de esquerda e o terrorismo de direita (efetivamente praticado).

Ora, mesmo levando em conta a inexistência de uma definição do termo "terrorismo"  amplamente aceita pela comunidade internacional e pelos estudiosos do tema, é preciso  destacar que:

a) Atualmente tal prática é, em grande medida,  associada ao ato político violento e indiscriminado. Por exemplo, a explosão de uma bomba num espaço público que mata, premeditadamente, tanto membros das forças inimigas quanto pessoas inocentes (algo muito praticado pela Al-Qaeda e por outros agrupamentos no Oriente Médio);

b) As organizações que atuavam na luta armada contra a ditadura civil-militar no Brasil não desenvolviam tais tipos de ações;

c) Os grupos para-militares de extrema-direita, contrários à abertura política (anistia, maior liberdade de expressão etc.), desencadearam várias ações premeditadamente violentas e indiscriminadas como, por exemplo, as citadas explosões de bombas em instituições acadêmicas, bancas de jornal e entidades da sociedade civil;

d) Os militantes e os agrupamentos envolvidos na luta armada condenavam o terrorismo e, portanto, não aceitavam o rótulo de "terroristas". Seguiam, então, os ensinamentos de Che Guevara - uma das principais referências teóricas e políticas dos revolucionários da época.  Dessa maneira, cabe registrar que, para Che,

"É preciso distinguir claramente a sabotagem, medida revolucionária de guerra altamente eficaz, e o terrorismo, em geral, medida bastante ineficiente, indiscriminada em suas consequências, pois, em muitos casos, faz vítimas entre pessoas inocentes, e que custa grande número de vidas preciosas à revolução." [3]

"O trabalho de sabotagem nada tem a ver com o terrorismo. Este e o atentado pessoal são fases absolutamente diferentes. Julgamos, sinceramente, que o terrorismo é uma arma negativa que não produz de maneira nenhuma os resultados desejados, que pode lançar o povo contra o movimento revolucionário e ocasiona uma perda de vidas entre os insurretos muito superior ao que traz de benefício para a revolução. [4]

Vale ainda notar que Guevara somente aceitava, "em determinadas circunstâncias muito especiais" [5], o atentado pessoal, discriminado, para

"...justiçar algum destacado dirigente das forças opressoras, conhecido por sua crueldade e que por sua eficiência na repressão e por uma série de qualidades contra-revolucionárias tornam útil a sua supressão." [6]

e) As organizações da luta armada combatiam um governo ilegítimo e ilegal, fruto de um golpe militar, que reprimia duramente os opositores e impedia, particularmente após o AI-5, qualquer forma de manifestação (pacífica ou não). Tinham, então, pleno direito - independentemente do acerto tático da opção adotada (hoje, parece claro que tal escolha não foi a mais eficaz) - de travar o combate pela via das armas. [7]

Desse modo, chamar de "terroristas" os militantes que pegaram em armas para lutar contra a autocracia burguesa e comparar suas ações com os atos terroristas efetivados pelos setores da linha-dura do regime de 64 foi um grande equívoco cometido pelo colunista de "O Globo". Mais do que isso, foi uma postura lamentável, especialmente tendo em vista que o autor de tais impropérios pretensamente pertence ao campo democrático e progressista.

Notas:

[1] Vale observar que o autor tinha como objetivo, ao menos aparentemente, combater a tradição de intervenção das forças armadas na política nacional. Portanto, pretendia defender uma posição, em princípio, correta. Porém, acabou derrapando na argumentação e estabelecendo pontos de contato justamente com os maiores defensores de tal intervenção, ou seja, os extremistas de direita.

[2] "O Globo", 14/02/2010. Disponível em http://www.forte.jor.br/2010/02/15/a-anarquia-militar-e-praga-do-seculo-passado/

[3] GUEVARA, Che. A Guerra de Guerrilhas. Rio de Janeiro: Edições Futuro, 1961. Pág. 32 .

[4] Ibidem. Pág. 119

[5] Ibidem. Pág. 119

[6] Ibidem. Pág. 32

[7] Tal direito já foi reivindicado, inclusive, por inúmeros movimentos contra a opressão. Os partisans, por exemplo, lançaram mão dele na luta contra a ocupação nazista da França. Detalhe: ninguém pensa em  tachar atualmente os membros da Resistência Francesa como "terroristas".  Ao contrário, são tidos, dentro e fora de seu país, como heróis.


2 comentários:

  1. SEM COMENTÁRIOS.
    Suas observações míopes não merecem.

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  2. Valeu Daniel!

    Excelente artigo. Não sabia até hoje que você tinha um blog, e gostei de saber. Já pus no favoritos.

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