quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Gramsci e a questão democrática no Brasil


A esquerda marxista brasileira vivenciou no período de abertura política e, especialmente, logo após o fim da ditadura civil-militar (1964-1985) um rico processo de reflexões teórico-políticas. Entre tais reflexões, ocupou um papel relevante a discussão e a elaboração acerca da chamada questão democrática, ou seja, sobre as relações entre a democracia e o projeto socialista de transformação social.

O presente artigo - apresentado no Seminário Internacional Gramsci e os Movimentos Populares (http://www.nufipeuff.org/) - tem como objetivo contribuir para o desvelamento dos nexos entre tal fenômeno e o segundo ciclo da difusão das ideias de Gramsci no Brasil.


INTRODUÇÃO

A esquerda marxista brasileira vivenciou no período de abertura política e, especialmente, logo após o fim da ditadura civil-militar (1964-1985) um rico processo de reflexões teórico-políticas. Entre tais reflexões, ocupou um papel relevante a discussão e a elaboração acerca da chamada questão democrática, ou seja, sobre as relações entre a democracia e o projeto socialista de transformação social.

Não foi a primeira vez, vale destacar, que os marxistas enfrentaram tal problemática no Brasil. O PCB, por exemplo, já havia abordado tal questão na famosa Declaração de Março de 1958 (PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO, 1980, 3-27 p.). Entretanto, as formulações e os debates sobre o tema ganharam um novo impulso e uma nova qualidade com o desmoronamento do regime autocrático burguês, alcançando uma sofisticação, um rigor e uma centralidade incomparáveis.

Tais modificações nas formulações acerca da questão democrática são contemporâneas de uma vigorosa retomada do interesse pelas ideias de Gramsci no Brasil.

Existe alguma relação entre tais fenômenos? Qual? Mais precisamente, o pensamento gramsciano1 teve algum papel no surgimento de uma nova abordagem sobre o vínculo entre o socialismo e a democracia?

O presente trabalho pretende contribuir para o esclarecimento de tais indagações. Para isso, tematizará as posições sobre a questão democrática desenvolvidas tanto pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) quanto pelo Partido dos Trabalhadores (PT) – agremiações que aglutinaram a maior parte dos marxistas brasileiros e hegemonizaram, em momentos distintos, o conjunto da esquerda nacional – e a incidência do pensamento de Gramsci em tais elaborações, tendo como referência os distintos momentos da recepção de suas ideias no Brasil.

O 1 CICLO DA RECEPÇÃO DE GRAMSCI E A QUESTÃO DEMOCRÁTICA

A difusão das ideias de Gramsci em terras brasileiras teve início, efetivamente, no início dos anos 60. Foi então que começou, nas palavras de COUTINHO (2007, 279-305 p.), o primeiro ciclo da recepção do pensador sardo no Brasil. Antes disso, ele era conhecido nos meios progressistas e de esquerda apenas como uma figura moral, ou seja, como um exemplo de compromisso com a causa comunista e com a luta antifascista. Seu pensamento era ignorado2.

Mais ou menos na mesma época, o PCB voltou a colocar a questão democrática no centro de suas preocupações. A já citada Declaração de Março de 1958, aprovada pelo Comitê Central do “Partidão”, foi um marco em tal processo3. Nela, os comunistas, partindo de uma avaliação de que nas condições brasileiras “o desenvolvimento capitalista corresponde aos interesses do proletariado e de todo o povo”, defendem que a revolução no país “não é ainda socialista, mas antiimperialista e antifeudal, nacional e democrática” (PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO, 1980, 13 p.). Conforme tal avaliação, propõe um amplo bloco de forças supostamente interessadas em tal revolução:

Ao inimigo principal da nação brasileira se opõem, porém, forças muito amplas. Estas forças incluem o proletariado, lutador mais consequente pelos interesses gerais da nação; os camponeses, interessados em liquidar uma estrutura retrógrada que se apoia na exploração imperialista; a pequena burguesia urbana, que não pode expandir as suas atividades em virtude dos fatores de atraso do país; a burguesia, interessada no desenvolvimento independente e progressista da economia nacional; os setores de latifundiários que possuem contradições com o imperialismo norte-americano, derivadas da disputa em torno dos preços dos produtos de exportação, da concorrência no mercado internacional ou da ação extorsiva de firmas norte-americanas e de seus agentes no mercado interno; os grupos da burguesia ligados a monopólios imperialistas rivais dos monopólios dos Estados Unidos e que são prejudicados por estes.” (PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO, 1980, 14 p.)

Também levantam a “possibilidade real de conduzir, por formas e meios pacíficos, a revolução antiimperialista e antifeudal”, afirmando que “este caminho é o que convém à classe operária e a toda a nação” (PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO, 1980, 22p.). Para não deixar dúvidas, ressaltam que

O caminho pacífico significa a atuação de todas as correntes antiimperialistas dentro da legalidade democrática e constitucional, com a utilização de formas legais de luta e de organização de massas. É necessário, pois, defender esta legalidade e estendê-la, em benefício das massas. O aperfeiçoamento da legalidade, através de reformas democráticas da Constituição, deve e pode ser alcançado pacificamente, combinando a ação parlamentar e a extraparlamentar.” (PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO, 1980, 22p.)

Desse modo, em tal documento, propugnam o aprofundamento da democracia, combinado com o respeito às “regras do jogo”, como o caminho para uma determinada fase da revolução brasileira – a etapa “nacional e democrática”. Todavia, não estabelecem nexo algum entre a democracia, a chamada etapa socialista da revolução e o próprio socialismo.

O 5° e o 6° Congressos do PCB, realizados respectivamente em 1960 e 1967, reafirmaram, em suas linhas gerais, as posições expressas na Declaração de 1958, consolidando a nova orientação adotada pelo partido4 (tanto em seus avanços quanto em seus limites5).

A coincidência entre, de um lado, o surgimento do primeiro ciclo da recepção de Gramsci no país e, de outro lado, a retomada da centralidade da questão democrática parece sugerir – apesar da notável ausência dos conceitos políticos gramscianos nos artigos e documentos da época6 - uma influência do comunista italiano nos debates sobre o tema então travados na esquerda brasileira. Entretanto, tudo indica que isso não aconteceu.

Durante tal ciclo, que terminou na metade dos anos 70, o dirigente comunista italiano foi tido, predominantemente, como filósofo e crítico literário. Suas contribuições especificamente no campo da política foram ignoradas ou secundarizadas (COUTINHO, 2007, 286 p.).

Tal situação não foi substancialmente alterada com a publicação em português, em 1966 e 1968, de uma parcela bastante significativa da obra gramsciana: uma ampla seleção das Cartas do Cárcere e parte da edição temática dos Cadernos do Cárcere7.

Assim, sua incidência nas discussões propriamente políticas, como as estabelecidas sobre o papel da democracia na transição socialista, foi residual.

Além disso, vale registrar que essa “primeira tentativa de propor Gramsci para o público brasileiro teve escassa repercussão” (COUTINHO, 2007, 287 p.). Basta lembrar que as obras do autor italiano encalharam nas livrarias, sendo vendidas em saldos “a preço de banana”. Consequentemente, apesar dos esforços empreendidos, seu pensamento sensibilizou uma pequena parcela dos militantes identificados com a teoria social fundada por Marx, não tendo o poder de embasar o giro democrático operado pela outrora principal organização comunista tupiniquim.

Portanto, as elaborações sobre a questão democrática produzidas na esteira da Declaração de Março ainda tiveram como fundamento o chamado marxismo-leninismo – doutrina oficial do movimento comunista internacional, fortemente enraizada no PCB, caracterizada por uma visão instrumental da “democracia burguesa” (ou seja, de toda e qualquer democracia vigente nos marcos do capitalismo).

O 2 CICLO DA RECEPÇÃO DE GRAMSCI E A QUESTÃO DEMOCRÁTICA

O segundo ciclo da recepção das ideias de Gramsci no Brasil começou em meados da década de 70. Nele, houve um crescimento significativo do interesse pela obra do autor sardo, expresso tanto na considerável ampliação do número de artigos e ensaios publicados sobre o dirigente comunista8 quanto na reedição das Cartas e dos Cadernos do Cárcere9. Além disso, a influência do pensamento gramsciano passou a transcender “o círculo dos intelectuais marxistas e dos partidos de esquerda” (COUTINHO, 2007, 301 p.). Porém, ocorreu então algo ainda mais relevante: “nesse novo ciclo, Gramsci já não era apresentado apenas como um eminente filósofo ou sociólogo da cultura, mas sobretudo como o maior teórico marxista da política.” (COUTINHO, 2007, 293 p.)

Para COUTINHO, essa retomada teve duas causas principais:

Em primeiro lugar, é então que se inicia o processo de abertura política que corroeu gradualmente o regime militar. A vitória do Movimento Democrático Brasileiro (então o único partido legal de oposição, no qual se agrupava um amplo arco pluralista de forças políticas e sociais, dos liberais conservadores aos comunistas) nas eleições parlamentares de 1974 obrigou o governo militar a relaxar a censura, criando-se assim um clima de relativa liberdade na vida cultural, semelhante ao que ocorrera nos anos 1964-1968. E, em segundo lugar – o que me parece mais importante -, inicia-se então na esquerda uma radical reavaliação autocrítica de seus velhos modelos.” (COUTINHO, 2007, 292 p.)

Nesse contexto, veio a lume uma nova abordagem sobre a questão democrática. Inicialmente discutida no PCB, ela foi assumida por uma ala do partido, a chamada tendência10 “renovadora” ou “eurocomunista”11. Tal ala propugnava um aprofundamento das posições manifestas na Declaração de Março de 1958 e nas resoluções do 5° e do 6° Congressos.

O texto A democracia como valor universal (COUTINHO, 1984), publicado em 1979, sintetiza os eixos gerais da proposta “renovadora”. Escrito por Carlos Nelson Coutinho, tal texto teve um grande impacto tanto nos debates internos do PCB quanto nas discussões dos demais agrupamentos e intelectuais de esquerda. Nele, Carlos Nelson coloca a questão democrática no centro superação do capitalismo. Mais do que isso, afirma que

[...] para os que lutam pelo socialismo em nome dos interesses histórico-universais dos trabalhadores, na convicção de que somente o socialismo é capaz de promover a libertação de toda a humanidade, a democracia política não é um simples princípio tático: é um valor estratégico permanente, na medida em que é condição tanto para a conquista quanto para a consolidação e aprofundamento dessa nova sociedade.” (COUTINHO, 1984, 25 p.)

Em outras palavras, segundo Coutinho, não só o aprofundamento da democracia é a via para a construção do socialismo como muitas das liberdades democráticas - forjadas no bojo das revoluções burguesas (pluripartidarismo, princípio da soberania popular etc.) - devem ser mantidas na nova ordem social. Isso porque

A superação da alienação política pressupõe o fim do 'isolamento' do Estado, sua progressiva reabsorção pela sociedade que o produziu e da qual ele se alienou. Ora, com o atual nível de complexidade social, essa reabsorção só se tornará possível por meio de uma articulação entre o organismos populares de democracia de base e os mecanismos 'tradicionais' de representação indireta (como os Parlamentos).” (COUTINHO, 1984, 30 p.)

A transformação social se daria, então, através da “[...] 'criação' de novos institutos políticos que não existem, ou existem apenas embrionariamente, na democracia liberal clássica [...]” e da “[…] mudança de função de alguns velhos institutos liberais.” (COUTINHO, 1984, 26 p.), por meio de uma crescente pressão popular. Isso sem esquecer que “a teoria socialista […] deve colocar claramente a questão da hegemonia como questão central de todo o poder de Estado” (COUTINHO, 1984, 34 p.).

Assim, com o texto de Carlos Nelson, as tarefas da democratização deixaram de ser limitadas, como nas elaborações precedentes, a uma determinada fase da revolução brasileira – a etapa “nacional e democrática”, considerada como anterior à etapa socialista. A questão democrática passou a penetrar na questão socialista.

A vertente “renovadora” participou do processo preparatório para o 7° Congresso do PCB12. Todavia, apesar da enorme ressonância de sua posições, acabou derrotada antes da realização do mesmo pela maioria do Comitê Central, “[...] que pretendia que a renovação ficasse limitada a um mero aggiornamento.” (PINASSI, 2002, 136 p.). Os “eurocomunistas” saíram então em massa do “Partidão”, indo para diferentes organizações políticas (alguns foram, inclusive, para o PT).

Curiosamente, poucos anos depois, o setor majoritário da direção do PCB assumiu as bandeiras de seus outrora adversários “renovadores” - processo consolidado no 9° Congresso do partido, em 1991. A Declaração Política de tal Congresso, ocorrido sob o signo da falência do “socialismo real”, defende que

A democracia é um valor de caráter universal e radical. O socialismo por este prisma é incompatível com qualquer forma de opressão e supressão dos direitos fundamentais, individuais e coletivos. […] No socialismo não pode haver, em nenhuma hipótese, supressão ou subestimação da democracia formal em nome da 'democracia real'. A democracia é um valor insubstituível, em qualquer tipo de sociedade, para que as divergências de opiniões e credos possam se manifestar e existir a possibilidade real de alternância no poder.” (FREIRE, 1991, 109-110 p.)

Para fundamentar tal posição, acrescenta que “a supremacia da sociedade civil sobre o Estado é um princípio a ser perseguido infatigavelmente. (FREIRE, 1991, 110 p.) e que

Não mais compartilhamos a ideia de um Estado como um 'comitê executivo da burguesia', pura e simplesmente,. O Estado no mundo moderno é permeável à ação da sociedade civil e pode ser submetido ao seu controle, sendo passível da disputa no jogo democrático por forças sócio-políticas contraditórias. 'O Estado ampliado', uma vez que a hegemonia burguesa é exercida na sociedade civil e legitima seu controle sobre o aparelho de Estado strictu sensu, coloca inúmeras e novas equações para quem pensa construir o socialismo por via democrática.” (FREIRE, 1991, 110 p.)

Além disso, quanto ao caminho para a transformação socialista, afirma que a esquerda deve ter a “[...] capacidade de exercer sua hegemonia política e cultural na sociedade civil mesmo antes de se tornar dirigente do Estado” (FREIRE, 1991, 107 p.) e que

Não podemos visualizar o socialismo como algo só passível de construção quando em graves crises ou nos estertores do capitalismo. Queremos construí-lo desde logo, através da implementação de um projeto politico reformador e capaz de plasmar – e projetar – o futuro socialista no presente. Uma via processual de caráter revolucionário, centrada na democracia, o que requer: a socialização da política com a criação de mecanismos de democracia de massas [...]” (FREIRE, 1991, 109 p.)

No ano seguinte, no 10° Congresso (1992), a maioria do Comitê Central extinguiu o PCB e criou o PPS (Partido Popular Socialista) – agremiação que logo depois abandonou a perspectiva socialista.

O PT – partido fundado em 1980, ou seja, durante a vigência do segundo ciclo gramsciano – demorou um pouco mais para enfrentar, a fundo, a questão democrática, embora tenha desde o princípio incluído “[...] a luta pela democracia e pelo socialismo no centro estratégico de seu projeto para o Brasil” (PT: UM PROJETO PARA O BRASIL, 1989, 9 p.). Foi somente no 5° Encontro Nacional, em 1987, que o partido discutiu pormenorizadamente o assunto. Nele, foi definido que a “ausência de democracia, do direitos à livre organização dos trabalhadores, é contraditória com o socialismo pelo qual lutamos” (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1999, 316 p.) e que “o PT rejeita a concepção burocrática do socialismo, a visão do partido único [...]” (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1999, 317 p.). Também foi estabelecido que

Embora a liquidação da burguesia, como classe, compreenda também a liquidação de suas organizações civis e de seu Estado, grande parte das organizações da sociedade civil hoje existentes continuarão presentes na nova sociedade e não podem (e não devem) ser abolidas por decreto” (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1999, 317 p .).

Além disso, o 5° Encontro, considerando que […] o Estado brasileiro […] não tem condições de se fechar completamente à participação das classes subalternas em seu interior” (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1999, 316 p.), decidiu que, para construir o socialismo, “ […] os trabalhadores precisam transformar-se em classe hegemônica e dominante no poder do Estado, acabando com o domínio político exercido pela burguesia.” (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1999, 312 p.) - tarefa que deve ser efetivada através de uma política de acumulação de forças, que inclui a conquista de um governo “democrático e popular”. Vale notar que tal acumulação de forças não implica, em contraste com as velhas formulações do PCB, em alianças com a burguesia ou “[...] uma nova teoria das etapas, imaginando uma etapa democrático-popular, e, o que é mais grave, criando ilusões, em amplos setores, na possibilidade de uma nova fase do capitalismo, uma fase democrática e popular” (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1999, 322 p.).

O 7° Encontro Nacional do PT, realizado em 1990, aprofundou tais posições13. Na já famosa resolução O socialismo petista, ele declara que “o socialismo, para o PT, ou será radicalmente democrático ou não será socialismo” (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1999, 432 p.) e completa:

No plano político, lutamos por um socialismo que deverá não só conservar as liberdades democráticas duramente conquistadas na sociedade capitalista, mas ampliá-las. Liberdades válidas para todos os cidadãos e cujo único limite seja a própria institucionalidade democrática. Liberdade de opinião, de manifestação, de organização civil e político-partidária. Instrumentos de democracia direta, garantida a participação das massas nos vários níveis de direção do processo político e da gestão econômica, deverão conjugar-se com os instrumentos da democracia representativa e com mecanismos ágeis de consulta popular, libertos da coação do capital e dotados de verdadeira capacidade de expressão dos interesses coletivos” (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1999, 435 p.).

O I Congresso do PT, ocorrido em 1991, avançou ainda mais em tais definições14. Em suas resoluções, o socialismo é entendido como “[...] sinônimo de radicalização da democracia” (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1999, 499 p.), de modo que

[…] o PT rechaça a noção segundo a qual o pluralismo não passa de uma circunstância que se tolera, até o dia em que, suprimidas as classes sociais, supostamente se estabelecem as bases da homogeneidade de pesamento” (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1999, 500 p.).

Assim, conforme tal Congresso,

O socialismo pelo qual o PT luta prevê, portanto, a existência de um Estado de Direito, no qual prevaleçam as mais amplas liberdades civis e políticas, de opinião, de manifestação, de imprensa, partidária, sindical etc.; onde os mecanismos de democracia representativa, libertos da coação do capital, devem ser conjugados com formas de participação direta do cidadão nas decisões econômicas, políticas e sociais. A democracia socialista que ambicionamos construir estabelece a legitimação majoritária do poder político, o respeito às minorias e a possibilidade de alternância no poder.” (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1999, 500 p.)

Ao mesmo tempo, ao referendar o papel central da disputa de hegemonia na batalha pela transformação social, proclama que “[...] o socialismo que almejamos supõe a construção democrática de uma maioria disposta a construí-lo na sociedade” (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1999, 505 p.), sempre combinando a luta social com a luta institucional.

Os demais Encontros e Congressos petistas não foram muito além de tais elaborações (pelo menos até o II Congresso, realizado em 1999).

As formulações brevemente esboçadas acima – todas contemporâneas do segundo ciclo da recepção das ideias de Gramsci – têm, mesmo consideradas as suas diferenças, alguns eixos comuns:

a) estabelecem um nexo indissolúvel entre a democracia e o socialismo. Em outras palavras, adotam a defesa, por um lado, das conquistas democráticas – pluripartidarismo, liberdade de expressão etc. - como parte inalienável da futura sociedade socialista e, por outro lado, da radicalização democrática como meio de transformar revolucionariamente o país;

b) negam o etapismo da antiga elaboração pecebista sobre a questão democrática, ligando a radicalização da democracia à transformação socialista e revolucionária da sociedade brasileira (e não apenas a uma fase, anterior à suposta etapa socialista, da revolução brasileira).

c) buscam apoiar suas conclusões, mesmo que implicitamente, em conceitos gramscianos15. Assim, por um lado, para defender a democracia como o caminho para o socialismo, chamam a atenção para o caráter ampliado do Estado burguês brasileiro, fruto do recente crescimento da sociedade civil (processo de “ocidentalização”), e para a consequente centralidade da disputa pela hegemonia (entendida como consenso)16. Por outro lado, para sustentar uma concepção democrática de socialismo, argumentam, inspirados na abordagem gramsciana sobre a extinção do Estado17, o caráter estratégico do fortalecimento da sociedade civil diante do Estado-coerção18.

CONCLUSÃO

O novo enfoque sobre a questão democrática, gestado a partir do período de abertura política e crise terminal da ditadura civil-militar, possui significativas diferenças em relação ao produzido no final dos anos 50 e princípio dos anos 60 (simbolizado pela Declaração de Março de 1958).

Entre tais diferenças, vale destacar, do ponto de vista do presente trabalho, a existência de substratos teóricos distintos informando os dois enfoques em tela. As formulações contemporâneas do primeiro ciclo gramsciano - ao propor a democracia como via para uma revolução democrática e nacional -, ignoravam o pensamento do comunista sardo, tendo como suporte a ortodoxia marxista-leninista. as novas elaborações - construídas em meio a uma retomada do interesse pelas ideias de Gramsci, em particular por seu pensamento político – partiram das categorias gramscianas (sociedade civil, Estado ampliado, hegemonia etc.) para propor um renovado vínculo entre a democracia e o socialismo – sem etapismos ou percepções utilitárias das conquistas democráticas.

Pode-se concluir, desse modo, que: a) a ortodoxia marxista-leninista representou um obstáculo para o florescimento de uma perspectiva democrática e socialista (ou, ao menos, não facilitou tal florescimento); b) as ideias do pensador italiano, ao contrário, estimularam a superação dos gargalos até então postos para o aprofundamento de uma proposta democrática de ultrapassagem da ordem do capital.

Assim, não é um exagero afirmar que o pensamento de Gramsci teve um papel capital – evidentemente combinado com outros fatores - no surgimento de uma nova abordagem sobre a questão democrática entre os marxistas brasileiros.

Daniel Domingues Monteiro

BIBLIOGRAFIA:

COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal e outros ensaios. 2ª edição. Rio de Janeiro: Salamandra, 1984.

______. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. 3ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

FREIRE, Roberto. O que mudou no PCB? Brasília: Novos Rumos, 1991.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. 2ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, v. 3.

______. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002a, v. 6.

KONDER, Leandro. A democracia e os comunistas no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1980.

PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO. PCB: vinte anos de política – 1958-1979 (documentos). São Paulo: LECH, 1980.

PT: UM PROJETO PARA O BRASIL. São Paulo: Brasiliense, 1989.

PARTIDO DOS TRABALHADORES. O PT e o marxismo. São Paulo: Teoria & Debate, 1991.

______. Partido dos trabalhadores – resoluções de encontros e congressos (1979-1998). 1ª reimpressão. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999.

PINASSI, Maria Orlanda (org.). Leandro Konder: a revanche da dialética. São Paulo: Boitempo/ UNESP, 2002.

SAID, Ana Maria. Uma estratégia para o ocidente: o conceito de democracia em Gramsci e o PCB. Uberlândia: EDUFU, 2009.

SILVA, Fabricio Pereira da. Utopia dividida: crise e extinção do PCB (1979-1992). Rio de Janeiro: UFRJ, 2005. CD-ROM.

Notas:

1 Gramsci pouco tratou, em sua obra, da problemática democrática (ao menos explicitamente). Segundo o levantamento presente ao final da nova edição brasileira dos Cadernos (GRAMSCI, 2002a, 471 p.), em sua obra máxima o autor comunista menciona a palavra democracia (e termos derivados), na maior parte das vezes de modo lateral, em apenas 12 notas. Além disso, somente uma nota contém a palavra democracia no título (GRAMSCI, 2002, 287 p.). Mesmo assim, Carlos Nelson Coutinho, por exemplo, identifica uma teoria da democracia no pensamento gramsciano (COUTINHO, 2007, 255-278 p.).

2 Lincoln Secco parece concordar, com algumas nuances, com a periodização proposta por COUTINHO (2007, 279-305 p.). Ele chama o momento anterior ao surgimento dos primeiros estudos sobre as ideias do comunista sardo e à publicação de sua obra (ambos na década de 60), numa expressão bastante feliz, de “Pré-História” de Gramsci no Brasil (SECCO, 2002).

3 Infelizmente, não será possível, por conta das limitações do presente trabalho, analisar detidamente tanto a Declaração de Março quanto os demais textos e documentos discutidos a seguir. Serão apresentados, apenas, seus traços mais fundamentais.

4 O 7° Congresso foi realizado somente na década de 80, num momento em que já havia sido concluído o primeiro ciclo gramsciano.

5 Vale notar que, ao discutir as resoluções do 5° Congresso, KONDER chama a atenção para tais limites em termos muitos semelhantes aos utilizados no parágrafo anterior para comentar a Declaração de Março de 1958 (1980, 102 e 109 p.).

6 O termo “hegemonia”, por exemplo, chegou a ser utilizado na Declaração de Março. Entretanto, foi empregado em sua acepção leniniana.

7 O projeto original previa a publicação das Cartas e de seis volumes dos Cadernos: Concepção dialética da história (Il materialismo storico e la filosofia di Benedetto Croce), Os intelectuais e a organização da cultura, Literatura e vida nacional (numa edição reduzida), Maquiavel, a política e o estado moderno, as notas sobre Il Risorgimento e os apontamentos sobre Passado e presente. Somente os quatro primeiros volumes dos Cadernos foram então traduzidos e publicados, o primeiro em 1966 e os demais em 1968 (COUTINHO, 2007, 285 p.). 

8 COUTINHO registra a publicação, entre 1975 e 1980, “de 24 títulos sobre o nosso autor (contra apenas 3 em todo o período anterior)” (2007, 292 p.). Já SECCO contabiliza a publicação de “dezesseis artigos e ensaios sobre Gramsci no Brasil” (2002, 46 p.) antes de 1975. Entretanto, concorda com a avaliação de que houve um “boom gramsciano” (2002, 50 p.) em tal ciclo.

9 As versões das Cartas e dos Cadernos do Cárcere originalmente publicadas em 1966 e 1968 foram, desde então, sucessivamente reeditadas. Somente em 1999 teve início a publicação de uma nova edição, mais completa e seguindo outros critérios de organização, de tais obras.

10 Na verdade, tal ala foi muito mais uma corrente de opinião do que uma tendência orgânica. Vale observar, para ilustrar tal afirmação, que seus membros romperam com o PCB em distintos momentos e tomaram rumos bem diferentes.

11 Os adeptos de tal tendência tinham como referência geral o eurocomunismo – movimento internacional liderado pelo Partido Comunista Italiano (PCI) e caracterizado, grosso modo, pela defesa da democracia como valor universal, por uma visão crítica do “socialismo real”, por uma insistência na particularidade histórica do “ocidente” e pela construção de partidos de novo tipo (de massas, laicos etc.). O eurocomunismo pretendia ser “uma terza via entre o stalinismo e a socialdemocracia” e “uma atualização das formulações de Gramsci” (PINASSI, 2002, 133 p.).

12 Tal Congresso seria realizado, originalmente, em dezembro de 1982. Entretanto, dissolvido pela polícia (o PCB ainda era um partido clandestino), acabou ocorrendo apenas no início de 1984.

13 Tal Encontro já contou com as contribuições, enquanto militantes petistas, de dois expoentes da tendência “renovadora”: Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder.

14 O I Congresso foi precedido pelo seminário “O PT e o marxismo”. Tal seminário reuniu diversos intelectuais e dirigentes partidários e debateu, entre outros temas, a relação entre o marxismo, a democracia e a revolução – discussão que contou com a participação de Carlos Nelson Coutinho (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1991). 

15 Embora já existissem na época distintas leituras da obra do dirigente comunista italiano, a nova abordagem foi decisivamente marcada pela interpretação feita pelo movimento internacional eurocomunista (e pelo esforço de atualização do pensamento de Gramsci desenvolvido por tal movimento). Alguns autores, como SAID (2009), discordam radicalmente de tal leitura, ao ponto de considerá-la estranha à obra do secretário geral do PCI. Todavia, interessa aqui registrar que, independentemente da fidelidade ou não ao corpo teórico gramsciano - discussão que foge aos objetivos do presente trabalho -, a interpretação eurocomunista dialoga efetivamente com o seu pensamento e, mais significativo, teve um peso preponderante na difusão de suas ideias no país.

16 Especialmente no texto de Carlos Nelson e nas resoluções do 9° Congresso do PCB, tais concepções são articuladas com uma nova teoria, processual, da revolução (em contraponto à teoria clássica, tida como explosiva). 

17 Compreendido como “[...] o desaparecimento progressivo dos mecanismos de coerção, ou seja, 'a reabsorção da sociedade política na sociedade civil'. As funções sociais da dominação e da coerção – à medida que se avança na construção econômica do socialismo, cedem progressivamente espaço à hegemonia a ao consenso.” (COUTINHO, 2007, 138 p.)

18 A sociedade civil é considerada como o espaço do consenso e, portanto, da construção de uma vontade geral ou coletiva, ou seja, da prioridade do público sobre o privado, essência da democracia.

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